O Profº Fernando Pita, 52 anos, nascido no Rio de Janeiro, professor de latim na UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro e ativista do movimento esperantista, já de um longo tempo, concedeu gentilmente uma entrevista para o blogue, cuja primeira parte aparece nesta postagem, em que ele fala sobre seus interesses pelo latim e esperanto, defende a ideia de que a língua de Cícero não está morta, como muitos a consideram, e discorre sobre as perspectivas futuras para o esperanto.
1. O que o levou a interessar-se pelos estudos de latim e esperanto, hoje atuando profissionalmente como professor de latim e, ao mesmo tempo, destacando-se como uma das figuras de destaque maior no movimento esperantista brasileiro?
Inicialmente
quero dizer que esse negócio de “figura de destaque maior” é produto de sua
imensa bondade, meu caro. De modo algum eu me vejo como tal, pois penso que há,
no movimento, muita gente mais capaz que eu. Agora, vamos à resposta: na
verdade, desde criança, minha trajetória sempre foi voltada para a
aprendizagem/ensino de línguas estrangeiras, pois minha casa era frequentada
por gente de vários sotaques: mineiros, nordestinos, gaúchos, portugueses,
galegos, argentinos, italianos etc. Isso, inclusive, me ensinou a imitar
diversos tipos de sotaques do português e de outras línguas também... Mas o
mais importante é que, já nessa época, desenvolvi, de modo totalmente empírico
e aleatório, uma grande facilidade para a compreensão auditiva em línguas
estrangeiras.
E
então o esperanto entrou na minha vida: um belo dia, visitando a biblioteca
pública de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro, soube que em breve haveria
um curso gratuito do idioma (e tinha de gratuito mesmo, pois eu era duro feito
um coco!). Bom, fiz o tal curso, me apaixonei pela língua, arrumei
correspondentes, etc., o normal dos jovens esperantistas na era pré-internet. E
foi ali que eu descobri minha facilidade para idiomas, mencionada acima.
Claro,
por vários anos, o esperanto se resumia, na minha vida, à leitura de um
esporádico livro, pois eu trabalhava, fazia faculdade, constitui família (duas
vezes!) e tal. Além disso, nesse mesmo período, por razões profissionais, tive
de me dedicar a outros idiomas, e assim, depois do esperanto, vieram o inglês,
o espanhol (língua da qual me tornei professor e que me abriu as portas para
trabalhar em universidades particulares), o francês, e algumas outras, nos
níveis mais variados.
Em
um determinado momento, vi que, para continuar me aprofundando nesses idiomas,
teria que estudar, a sério, aquela que servia de base para todas elas: o latim.
Esses estudos me conquistaram de tal forma que acabei fazendo outro mestrado, o
doutorado e, em seguida, acabei me tornando professor de latim na UERJ. Hoje,
três línguas habitam minh’alma, por assim dizer: a espanhola (la sangre de
mi espíritu, como já dizia Unamuno), a latina (mater et regina omnium
linguarum) e o esperanto (la sensanga lingvo de l’ espero) e, no meu
trabalho, tento sempre conciliar minhas atividades de ensino e pesquisa a cada
uma delas. Não é fácil e não me faz popular, mas isso é café pequeno diante da
alegria que elas me proporcionam.
2. Como professor de latim pela Uerj, o que você
teria a dizer sobre a ideia comumente difundida de que o latim seja uma
"língua morta"? Confesso, diga-se de passagem, que você me fez mudar
de ideia sobre a questão.
De princípio, gosto de questionar essa conceituação morta/viva quando aplicada às línguas. A rigor, uma língua não é um ser vivo, por conseguinte, não pode morrer, certo? Mas, como tudo que diz respeito ao ser humano, uma língua, qualquer que seja, está em constante transformação e, assim, vai-se diferenciando de si mesma ao longo dos séculos.
Desse
modo, a história de uma língua é como um filme: se você analisar apenas dois
fotogramas, verá cenas muito diferentes, mas que, afinal, são partes de um
todo. Daí uma pessoa vê um texto de Cícero e outro de Drummond e, à primeira
vista, não percebe que, na verdade, o que se tem ali são dois momentos
diferentes de uma mesma trajetória linguística, distanciados entre si por 22
séculos. Como isso costuma ser paradoxal para a maioria – que lamentavelmente
não estuda a história de sua própria língua – fica mais didático, e até
politicamente correto, dizer que são línguas diferentes. Contudo, o mais
correto, nesse caso, seria dizer que uma língua está ou não em uso corrente. E o fato de não estar
em uso não significa que não se possa voltar a essa condição: veja-se o caso do
hebraico, considerado língua “morta” no começo do século XIX e que hoje é a
língua oficial de Israel. Ou seja, havendo documentação que nos permita
reconstituir aquele momento da língua, colocá-la novamente em uso não é uma
tarefa impossível.
Além
disso, até hoje há gente por aí que estuda, lê e até fala o latim clássico! E
não estou falando dos moradores do Vaticano. Assim como aconteceu com o
esperanto, o latim teve um grande impulso graças à internet, desenvolvendo
grupos de conversação, cursos virtuais, canais de Youtube, etc. Além disso, a Pontificia Academia Latinitatis se
encarrega de criar os neologismos necessários à atualização da língua; além de
promover concursos anuais de poesia, prosa, etc., que funcionam como os Belartaj Konkursoj da UEA, só que com um
diploma assinado pelo papa!
Com
isso tudo, posso dizer que, no século XXI, o latim deixou de ser uma língua sem
função e se tornou, como o esperanto, uma língua planejada e construída.
3. Que perspectivas futuras você vê em termos de um uso maior do esperanto como instrumento linguístico para a comunicação internacional?
Acredito que o esperanto jamais teve um caminho tão livre como agora. Afinal, depois de 130 anos de vida, ninguém pode mais – senão por ignorância ou má-fé – dizer que o esperanto não funciona. Tampouco temos mais, como já aconteceu, governos autoritários perseguindo os esperantistas (no máximo, eles nos ignoram). Nos ambientes virtuais, o esperanto tem mantido uma taxa de crescimento e divulgação que, se não é grande, é constante, e isso é vantajoso a longo prazo. A produção cultural em esperanto permanece em alta, o que também é um ótimo sinal. Trocando em miúdos, o esperanto vai muito bem, obrigado!
Contudo, o grande desafio não está no esperanto em si, mas no movimento: as novas gerações – falo da galera que tem menos de 25 anos – não considera importante participar de grupos, associações e coisas do tipo; principalmente se tiver de pagar anuidade pra isso. Trata-se de uma galera que se junta, abraça uma causa e batalha por ela, mas que despreza estruturas burocráticas em geral, e meu lado anarquista acha isso ótimo, ok? E essa situação não atinge apenas o movimento esperantista, mas diversas outras formas de associação. Todas estão vivendo essa forma inusitada de crise, e buscando, cada uma à sua maneira, resistir e/ou adequar-se a esse novo quadro; e pra ser sincero, acho que a maioria das instituições esperantistas têm demorado demais até pra reconhecer que o problema existe...
Então, não imagino que o esperanto venha, num futuro próximo, a ser adotado por algum instituição internacional ou coisa do tipo, mas tenho certeza de que ele é cada vez mais usado por indivíduos que, independente de qualquer outra coisa, vivem a língua e fazem dela seu instrumento primordial de comunicação. E isso, meu caro, está ao alcance de qualquer um, certo?
Veja a 2ªparte da entrevista
em https://cesardorneles4.blogspot.com/2022/03/entrevista-com-fernando-pita-2-parte.html
Excelente entrevista. Conhecendo um pouquinho o professor Fernando Pita eu já o admirava. Agora, após essa entrevista, passei o admirar muito mais. Estou ansioso para ver o restante da entrevista.
ResponderExcluirOs argumentos para justificar que o latim não é exatamente uma língua morta foram excelentes! Acrescento que também usamos a língua latina na taxonomia botânica para a diagnose das espécies e, claro, de modo muito desajeitado latinizamos os nomes científicos em toda a biologia.
ResponderExcluirLaudate Dominum!.... Belega!..... rsrsrsrssss.....
ResponderExcluirParabéns pelas ideias, prof. Pita. Obrigado, César, pela entrevista.
ResponderExcluirMuito legal. Parabéns e obrigado, Pita e César.
ResponderExcluirEn Esperanto: Mojosa! Gratulon kaj dankon, Pita kaj César.
Em Latin, não sei. rsrs