Sempre leio com interesse os artigos em jornal de Eliane Marques, poeta e psicanalista. Seu último publicado (vide fonte) trata do espetáculo online de teatro A última negra, que pôde ser apreciado em abril e voltará em breve, cuja temática tem a ver com questões ligadas ao racismo estrutural, não só de sociedades como a norte-americana, p. ex., mas também a brasileira, nestes tempos em que se constata a falência da mítica democracia racial verde-amarela.
Em sua exposição, que não entrarei em detalhes, para não me alongar, ela menciona o racismo verificável da obra do festejado autor Monteiro Lobato (1882-1948), patrono da Literatura Infantil brasileira..., mais claramente observável em seu romance de ficção científica O Presidente Negro, originalmente O Choque das Raças ou o Presidente Negro, escrito para um público adulto.
O enredo é mais ou menos o seguinte: por meio do porviroscópio, uma invenção do Prof. Benson, cientista, o personagem Ayrton, auxiliado pela filha do inventor, Miss Jane, tem a possibilidade de ter uma ideia do que se passa no futuro distante. Assim, ele toma conhecimento de que no ano 2228, nos EUA, há uma eleição presidencial em que o candidato branco, Kerlog, tenta a reeleição e vence o candidato negro Jim Roy e a candidata feminista Evelyn Astor. Os eleitores brancos não se conformam com a derrota e o vencedor é encontrado morto. Kerlog se reelege, através de um plano vitorioso com vistas a uma solução final para o problema negro.
Eliane Marques: Conforme o autor, nos Estados Unidos, local do romance, a eugenia dera cabo do pobre; a higiene, do doente; e a eficiência, do vagabundo, assim como uma fórmula química esterilizara a população negra.
Um exemplo de simples literatura distópica, tipo 1984 de George Orwell, ou uma obra que expressasse as próprias ideias do autor sobre determinados assuntos? Vejamos: em carta ao seu amigo Godofredo Rangel, escreveu, referindo-se ao seu livro: Um romance americano isto é, editável nos Estados Unidos(...). Meio à Wells, com visão do futuro. O "clou" será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Em outra correspondência, desta vez a seu amigo Tito, afirma entre outras coisas, que seria um ato de patriotismo se o brasileiro se casasse com uma imigrante italiana ou alemã.
O fato é que Lobato com esse livro sonhava em conquistar o público leitor norte-americano, uma sociedade eminentemente racista, com ideias que ele mesmo desposava desde o início do século, influenciado por pensadores como Le Bon, autor de L'Homme et les sociétés [O Homem e as sociedades], que via na miscigenação um fator de degeneração racial e pregava que as mulheres eram inferiores até mesmo aos homens de raças inferiores. Posteriormente o seu Jeca Tatu será um personagem que representará a figura do caboclo brasileiro, para ele uma "espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela", conforme suas próprias palavras.
A versão em inglês d'O Presidente Negro nos EUA, na qual Lobato depositava grandes esperanças de conquistar o mercado literário norte-americano, não conseguiu editor e ele, desiludido, declarou a respeito, em outra carta a seu amigo Rangel, que deveria ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.
Fontes | A última negra, artigo de Eliane Marques publicado no jornal Zero Hora de 1º-2/mai/2021.
Muito interessante!
ResponderExcluirAtualmente, por conta das discussões sobre a temática do racismo e combate ao mesmo, até mesmo as crianças (negras ou não)estão prontas a colocarem suas idéias em oposição a ele. Difícil foi na minha infância, ter lido a maioria dos livros de Monteiro Lobato e chorar sozinha, ao ler a descrição que foi feita de Tia Anastácia no Sítio do Pica Pau Amarelo pelo autor. E ninguém ao lado prá fazer o contraponto.
ResponderExcluirDetalhe: sou afrodescendente
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